Jabuticabas

Sempre desconfiei que existisse um mundo onde arrancassem nossos olhos e os substituíssem por botões, como no filme da Coraline. O bom senso se foi, em seu lugar se instalou a agulha com a avó que costura. Acabei caindo no sono,  sonho com botões e coroas de margaridas feitas pela Alice. Acordo com alguém batendo em minha porta. Não era nenhum estuprador querendo roubar minha decência, era apenas hora de levantar e arrumar a casa. Saindo do quarto, enquanto eu caminhava pelo corredor, escutei um barulho vindo do sótão, ‘deve ser algum gato’ pensei. Fui até a cozinha, haviam rosquinhas sobre a mesa, com uma térmica florida cheia de café cheiroso, sem leite. Acho incrível a forma que seu gosto se instala na boca depois de ser bebido.

Agora sozinha, vou para a sala ajeitar as coisas, escuto mais uma vez o barulho vindo do sótão, maldito gato. Subo as escadas pensando chegar ao inferno, tão escuro. Avisto ao longe um rato, achei que haviam todos morrido com o veneno que passei semana passada. Em um momento de descuido pensei ter ouvido ele dizer ‘não me siga, ou me siga, vamos vamos’. Como pode, estou enlouquecendo, ou lendo muito aquele tal livro onde a menina cai no buraco, mas isso não é um buraco, a não ser que desse pra cair para cima.

-Vamos me siga de uma vez garota burra.

Dessa vez pude ver seus olhos, haviam botões, e o rato estava mesmo falando! Deve ser mais um de meus sonhos malucos. Eu fui atrás dele subitamente, tropeçando. Avistei mais alguns animais, era uma raposa com filosofias sobre invisibilidade, um passado Dodô, um urso com olhos brilhantes e um hamster. O mais curioso é que todos eles estavam com botões no lugar dos olhos. A raposa se aproximou de mim com uma pequena caixa.

-Veja, costure-os.

Dentro dela haviam dois botões, cor vinho, uma agulha e barbante preto. Mas que droga era aquela, eu é que não ia fazer essa maluquice.

-Um, dois, tudo esta girando. Três, quatro, você quer entrar na ilha das criaturas? Cinco, seis, seus olhos não te servem de nada. Sete, oito, lá existem coisas inacreditáveis. Nove, Dez, isso deixou de ser uma escolha.

Fui derrubada pelo pássaro Dodô, amarrada pelo urso e quando me dei conta o hamster estava com uma coisa afiada arrancando meus olhos. Nada mais eu enxergava. Comecei a gritar desesperadamente tentando me libertar de toda maneira, mas de que adiantaria se já estava sem minha visão? Senti cada caminhada que o barbante fazia sobre minha pele. Poderiam ao menos usar algum tipo de anestesia, pra que deixar tudo tão doloroso.

Assim que o procedimento terminou fui desamarrada, não sentia dor alguma, achei estranho pois quando fui costurada doía um bocado. Passei minhas mãos em meu rosto, sensação estranha de não ter olhos. Mas eu via muito bem, ainda melhor do que com minhas lentes de grau.

-Desculpe se fomos grosseiros, não queríamos te assustar, mas precisa ser assim com os humanos, eles costumam ser extremamente teimosos e arrogantes... por isso optamos por esse jeito grotesco de abordar. –O Sr rato quem disse. –Venha, me siga, vou te mostrar sua missão por aqui. Só para avisar, não se preocupe com seus olhos, vamos guardar em um lugar seguro, onde a princesa Elefanta não ache.

A raposa das filosofias sobre invisibilidade o interrompeu e começou a exclamar em uma voz irritante.

-Você precisa nos salvar, queremos que você nos salve porque temos que ser salvos e se não salvar a gente vai não ser salvos e isso vai ser um problema pois não podemos ficar nessa coisa de não salvar e...

-Urso, injete morfina na raposa, ela vai começar com os surtos, pegue a seringa, injete logo.- Disse o rato.

Continuamos a caminhar, agora me sinto um tanto entorpecida, até parece que peguei o sintomas do animal. Questionei o que seria essa ‘missão’ tão importante que deveria ser feita e o pássaro Dodô me explicou que eu deveria resgatar os olhos guardados na nuvem dos sonhos, essa tal nuvem era protegida por três dragões, eles são as únicas criaturas que possuem olhos neste mundo, mas não protegem o lugar por serem maus e sim por serem obrigados a isso. A princesa os condenou a morte perpétua se não fizessem o que ela manda. Digo perpétua porque não existe só uma morte aqui, você pode morrer quantas vezes for preciso. Essa é uma ideia divertida, podemos brincar de morrer. Achei que seria uma boa ideia perguntar como eu faria isso, me arrependi assim que terminei a frase.

-Acha que se nós soubéssemos o que fazer iríamos ter te raptado? Parece burra, eu já deveria saber que não posso esperar muita coisa de gente como você.

Passamos por uma porta feita de mármore, parecia uma cidade em uma floresta. Tinham caminhos de pedras para serem seguidos com várias placas indicando por onde ir. No centro havia uma grande arvore com várias jabuticabas lindas, mas já fui alertada de que daquele fruto ninguém poderia comer, caso contrário a punição seria severa. Várias lendas diziam que a jabuticaba dava uma sabedoria sem igual. Quem teria feito essa lei estúpida de que não pode comer de seu fruto? Achei uma grande bobagem. Corri até a árvore, escalei até o galho mais baixo e peguei um negócio comestível daqueles. Não deu tempo nem de colocar na boca, uma gaivota veio em alta velocidade em minha direção, batendo tão forte em meu braço que me derrubou. Várias vozes diziam como em um coral ‘Maldita seja, não estrague nossa boa vida, maldita seja, não estrague o que de melhor temos’. Entendi que realmente eu não poderia comer, nem que tivesse vontade.

Fui levada pelo Rato que me instruiu a conversar com a Avó sobre a tal arvore, ele disse que ela era a única pessoa do mundo das criaturas que quase comeu a jabuticaba, sua punição foi nunca mais sair daquela casa, e poderia me ajudar com toda a situação de salvação. Fomos até uma pequena casa também feita de mármore, bati na porta e logo entrei, quando entrei avistei uma velhinha sentada em uma cadeira de balanço rosa.

-Avó, Posso entrar?

-Claro, entre. Você é a moça de quem me falaram? Muito bonita... gostaria de alguns cookies? Acabaram de sair do forno!

-Pode ser, na verdade vim até aqui para saber sobre a arvore que fica no centro. Me contaram que a senhora foi a única que já tentou comer, não sei se soube mas eu também tente hoje mas não tive nenhuma punição, ainda. Pode por favo me falar sobre ela?

Avó levantou rapidamente de sua cadeira e apoiando-se na bengala correu até a porta e janelas, trancando tudo e resmungando algo como ‘você é maluca, não sabe o que fez’. Voltou a sentar e começou com o sermão.

-Para sua informação agora a Princesa Elefanta vai te seguir, não vai sossegar enquanto não te achar, e sua punição não será só sua, a ira vai cair sobre todo este mundo, tudo vai ser devastado e vamos ter que reconstruir novamente, escondido, pois nunca mais seremos deixados em paz. A Princesa decretou que se mais alguém ousasse tentar comer do fruto, isso iria acontecer.

-Oh meu Deus, e agora o que farei?

-Sabe menina, nunca acreditei que isso fosse mesmo acontecer, meu pai me dizia que aquela arvore é nossa salvação, que se comermos dela teríamos sabedoria e a verdadeira felicidade. É por isso que a Elefanta não permite de jeito nem maneira nenhuma que alguém a coma, ela arranca os olhos de todos para que não percebam a manipulação, assim podendo fazer de nós fantoches, brinquedos servindo apenas para seu prazer. Quando tentei comer eu era jovem, fui perseguida por 3 dias, quando me pegaram fui colocada nessa casa e aqui estou até hoje. Você tem vantagem por enquanto, a Princesa não sabe de sua tentativa, se você conseguir ir até a arvore e comer a jabuticaba antes que ela saiba, salvará todos deste mundo. Eu te ajudaria se pudesse sair daqui. Vá logo, vá embora.

Sai em disparada até o Rato, contei tudo que a Avó me disse e fizemos um plano. Ele, a raposa, o urso, o passado Dodô e o hamster iriam distrair todas as outras criaturas enquanto eu subia na arvore e comia o fruto, acabando com o poder da Princesa, assim os três dragões poderiam nos entregar a nuvem de sonhos com nossos olhos e poderíamos voltar de onde viemos.

Quando terminamos de criar o plano corri para de baixo da árvore, meus aliados começaram a fingir que a raposa estava tendo mais um de seus surtos e precisava muito de morfina, que havia acabado. A Raposa começou a gritar e chorar, bater em tudo, falar coisas como ‘meu pé tem piolhos brilhantes, violentos que tocam violinos inteligentes’, todos voltaram com a atenção para eles, é claro. Quando comecei a escalar a árvore a Princesa estava vindo rapidamente em minha direção.

-Não faça isso, saia daí, menina atrevida, até parece a Avó enxerida, saia depressa se não vou te esmagar, sua verme.

Me apressei em subir, mas suas pernas largas logo chegaram e balançou toda a arvore assim que tentou parar, não conseguindo bateu com tudo e voou jabuticabas para todos os lados. A burra da Princesa facilitou meu trabalho. O rato começou a comer, e todos meus aliados também. Elefanta ficou furiosa, porém não tinha mais poder para nos dominar. Os três dragões foram libertos, com eles a nuvem dos sonhos caiu sobre nossas cabeças, os olhos foram para nossas mãos. Finalmente quando eu ia tirar meus botões e colocar meus olhos, algo estranho aconteceu, surgiu uma coroa em minha cabeça e um sopro de vozes como um coral apareceu.

-Nossa nova princesa, tirou nossas vendas, tirou nossas mágoas, agora estamos livres de toda espada.


A ideia de ser dona de algum lugar me deixou um tanto convencida, agora eu poderei ter o que quiser? Não seria maldade usar um pouco dessa boa vontade para me trazer um pouco de felicidade. Não seria tão cruel pegar essas vidas e transformá-las em minhas depois que elaborar um contrato e as fazer assinar no papel.

20 comentários que me fazem sorrir:

Adriana Leandro disse...

Nossa, quanta aventura pra pegar jabuticabas, hein. Bjus!

galerafashion.com

Felisberto T. Nagata disse...

Olá, Lari
puxa,que imaginação encantadora, me fez lembrar de Alice no País das Maravilhas!
Que seja a dona do mundo, faça o que quiser, pegue as jabuticabas e espalhe que podemos ser feliz independente de qualquer situação. Feliz é quem quer, quem opta, quem deseja…quem aprende. Aprendemos porque se não aprender , a vida vai me trazer de volta para o mesmo ponto, e andaremos em círculos até aprender , enxergar a saída e caminhar para frente. ..
Obrigado pela visita,bela noite, belo dia, beijos!

Unknown disse...

Oi Lari *-* assim que entrei aqui fiquei apaixonada pelo modelo do seu blog! Que lindo, é uma delicia passear por aqui e quanto talento para escrever você tem :)parabéns...

Um Super Abraço!
Estrela,Flores...Melancia

Mila disse...

Q imaginação, me senti meio q em Alice!
O conto é muito fofo, mas de nada adiantaria a nova rainha se torna uma tirana como a elefanta..
Bjs

http://achadosdamila.blogspot.com.br/

Ives disse...

Olá! Uau, quanto talento, parabéns! Já sou seu seguidor! abraços Espero você lá no meu espaço!

RUDYNALVA disse...

Lari!
Bom chegar aqui e ver texto elaborado e bem escrito.
Fico feliz que tenha voltado.
Ai como gosto de sua visitinha no blog, obrigada!
Desejo um final de semana de luz e paz!
cheirinhos
Rudy
Blog Alegria de Viver e Amar o que é Bom!
“Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade.”(Martha Medeiros)

Camilla ♥ disse...

caraca HUAUHAUHAHUAUHUH seu texto me lembrou muito alice in wonderland, adorei!

Beijos! http://sugar-dance.org/blog

Andreza Hoffmann disse...

Adorei, um conto bem aventureiro e divertido! >< ótima semana!! beijos

Motive to be Pretty disse...

Adoro ler seus textos, muita imaginacao!!Lindo texto! Bjus

Blog da Reh disse...

bem vinda de volta minha flor :D

Muito obrigada por comentar no meu blog!
Sempre que atualizar me deixe um recado no meu blog! Vamos estar sempre em contato?
Me segue nessas redes sociais e me manda uma mensagem por lá que te sigo e todas elas:
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Beeeijooos da Reh,

www.blogdareh.com.br

Tayane Ribeiro disse...

Que perfeito. acho que vou em busca das minhas Jabuticabas.
beijos

Cristiano disse...

Lembrou um conto do Stephen King, que o povo tinha que limpar um porão cheio de ratos. Mas o seu foi bem mais bonitinho que o dele.

Unknown disse...

Ainda bem que ainda existem talentos como este pelo Brasil...Lindo texto!

bjsss

Marília Pessoa disse...

Que lindo seu texto! Você criou uma metáfora perfeita! Adorei tudo!
Me senti na Alice in Wonderland! Muito legal!
bjs
blogtrashrock.blogspot.com

Bárbara Ximenes disse...

Adorei o texto.
the-insanegirl.blogspot.com.br

Suzana disse...

Incrível. Impressionante. Parece até que ela não se lembra que era oprimida antes de ter o poder... Vi um pouco de realidade aí ...

Carol Farias disse...

boa noite princesa :) obrigada pela visitinha e pelo incentivo tambem, realmente nao podemos nos dar por vencidas, é continuar e correr atras da inspiração mesmo que ela fuja de nós as vezes.. obrigada por lembrar.. muitos beijos e espero ver mais grandes histórias por aqui como essa também.. tenha uma ótima semana :)

http://t-alvez-p-oeta.blogspot.com.br/

Aline Goulart disse...

Fiquei encantada com a sua imaginação. Achei incrível o uso da metáfora. Eu vejo realidade também por aí.... Lindo! Beijos.

Leeh Trindade disse...

Uau, quanta imaginação e criatividade! Amei!

ps: estou participando de uma releitura de look, você poderia me ajudar clicando NESSE LINK e votando em mim? Quando acabar todas as fotos vai aparecer uma enquete, é só clicar na número 1 e depois clicar em votar! Não adianta tentar votar pelos comentários pois não vale, tem que ser só pela enquete! Agradeço muuuuito! Beijos!

Pâm disse...

Eita imaginação fértil hehe..
Adoreeeei a "aventura" ;)

Bjinhos ;*
Pâm