Fundo


Um barquinho com três pescadores em alto mar. Dia de azar, não pescaram nada. Eram cinco horas da manhã quando ouviram uma melodia doce. Parecia mais um canto... mas quem estaria cantando, se eles estão tão longe de qualquer superfície? Conversavam entre si de onde estaria vindo aquela voz maravilhosa.

Remaram em direção ao som, de longe foi visto uma mulher em uma pedra estreita. Ela tinha cabelos curtos e escuros, pele pálida, seios nus, pequenos e bonitos, colares com pedras coloridas e as pernas não conseguiam ver com clareza, parecia que estava usando calças compridas. Deveria ter 1,70m.

Os três estavam estupefatos com sua beleza, não conseguiam tirar os olhos e já estavam brigando sobre quem iria ficar com a moça. Um dizia que era mais velho e por isso merecia casar-se. Outro dizia que era mais bonito e o outro gritava que era o mais forte e quem mais levava peixes para as famílias e por isso era ele que deveria ter ela como esposa.

O primeiro soco, o sangue sobe à cabeça. Tapas e chutes e puxões.

O som que havia parado, retorna. Os rapazes voltam a atenção imediatamente  para o que importa. Remam com toda a força, com toda a alma. Estão com os olhos fixos, o coração disparado, a mente viajando no corpo daquela mulher.

Mais perto. Perto. Com o barquinho encostado na pedra.

Agora podem ver as pernas, não são calças compridas.

Os três sobem na pedra quase de uma vez só, ela pula na água, eles vão atrás com a certeza de que teriam aquela pele pálida em seus braços.

Se esquecem como nadar, a moça puxa para o fundo.

Na cidade pequena onde viviam, nunca mais se ouviu falar dos homens que saíram para pegar peixes.


Guelras


Ela está na praia sentada na pedra, tenta acender seu cigarro. Não consegue. Vento forte, chuva ás vezes. Na terceira tentativa tem sucesso.

O mar com sua beleza não esconde que é perigoso. Atrai quem passa, dá a sensação de que é a coisa certa a se fazer, e quando vê foi engolido. Ele vem, quebra as ondas, volta. Violento. Sedutor.

Ela despretensiosa, fuma devagar. Sem pressa de viver. Agora senta na areia por que a pedra ficou desconfortável. Está molhada da água, usando um biquíni que não combina, e uma regata cor-de-rosa forte, chamativo e sem shorts. Traga, olha o mar, observa as pessoas. Um casal e uma criança que brinca na areia, depois pula as ondas. Dois homens, um na beira do mar, e outro mais longe. E dois salva-vidas com o binóculos vezes olhando a bunda dela.

Puxa a fumaça, pega ar, segura, sopra. O cigarro acabou, ela apaga e joga o que sobrou no lixo. Tira a blusa e caminha em direção ao mar.

Algo estranho está para acontecer.

Ela entra de uma vez, o vento corta seu corpo. Se joga na água e começa a nadar. Esquece que as águas são violentas, é envolvida pela espuma salgada. Esquece que com o mar não se brinca.

Escuta um canto melódico e doce. Perde a função dos membros do corpo.

Como é que se respira? Suas narinas são inundadas com líquido. – Vou morrer, estou morrendo- pensa. Abre a boca tentando em vão achar oxigênio. Sente algo tocar seu braço esquerdo, sente alguma coisa à puxar bruscamente para mais fundo. –Estou morta. Mas por que ainda penso?

Os olhos antes fechados, agora se abrem. Agora pode enxergar o que está segurando seu braço: um ser de 1,90m, negro, barba cinza, quase branca e muito comprida. Suas pernas não existem, no lugar delas, está uma longa calda de peixe. Os olhos não ardem. Estranho. A moça acha que está alucinando, mas um outro ser bizarro resgata ela para a realidade.

- Quem é ela? – pergunta alguém de meio metro, branco feito gelo, com aspecto velho, mas tendo no máximo dez anos. Olhos esbugalhados, boca rocha e carnuda, o nariz é só um buraco no que diz ser um rosto. O corpo pequeno, uma bola, e os braços curtos de mais para seu tamanho. As mãos e pés são iguais, parecem de pato.

- Nossa nova sereia. –Responde o Tritão.

Neste momento já haviam chego ao fundo. Um lugar lindo, cheio de pedras coloridas e brilhantes, com casas, ruas, postes de luz, lojas... tudo feito com o material incrível. Havia uma platéia. Uma platéia  diferente.

- Senhoras e senhores, a profecia está se cumprindo. Uma humana se tornará um de nós. Assim como fomos avisados, uma moça com essas características estaria no local indicado, exatamente a esse horário. Aqui estamos ! - Ela não entende como algum som pode ser entendido embaixo da água. Muito confusa, tenta falar alguma coisa. Não sai nada. Todos observam o que ela está tentando fazer. Então se aproximam três sereias: Uma de calda azul claro, outra lilás, e a outra marrom, todas brilhantes.

Elas colocaram um colar de pedras coloridas no pescoço, pulseiras, brincos. E uma coroa pequena, cor de prata. A cerimônia começa.  Todos começam a cantar em sincronia, palavras desconhecidas. Enquanto proferem, coisas acontecem.

Começa por dentro. Seus órgãos mudam, adaptam. Depois em seu pescoço surgem guelras. Seu rosto muda, suas mãos, suas pernas.

As pernas foi a sensação mais estranha de todo o resto. Ela olha para elas, estão bem juntas, e começam a coçar. A pele humana se transforma em escamas ásperas e firmes. Agora as duas pernas grudam, e ela não consegue separar.

Agonia.

Tenta gritar, e dessa vez consegue.

Sua cor é prata, mais brilhante que a coroa. A metamorfose está completa.

Eis que nasce a nova rainha.

Dríade


Feminina, forte, corajosa. Nua na mata ela invoca os espíritos da floresta. –Venham, me contem como estão indo as coisas, Digam as novidades dos homens maus que trazem morte. – Ela conversa com os animais, afaga suas cabeças peludas ou peladas deixando-os tranqüilos quanto ao mundo obsceno lá de fora. Chega até as flores, gramas, árvores e trás vida aquelas que estão fracas, pedindo por água.

A mulher de aparência singela, mas firme, dança pela floresta. Canta com sua voz delicada e atrativa melodias que fazem querer viver. Ela chama os elementos. O fogo chega invadindo, sem queimar, a sensação é de revigorar ! e quando chove? É incrível, todos sentiam como se nenhum pecado existisse... depois vem a ventania, levando embora todo e qualquer desânimo. E por ultimo a terra se levanta, cada partícula minúscula entrando em contato com o espaço que antes era vazio.  Fortificando assim as entidades, controlando assim o que lhe foi designado.

Volta para sua caverna, senta em sua cama de nuvem ( que vezes é gelada da garoa, vezes quente de algodão ). Seu corpo pequeno, branca, curvas delicadas, cabelos longos,  gênio forte. Dona da natureza. Um poço de ódio pela injustiça humana, convertida em bondade e alto controle para cuidar do que ama.


Ilusão

Teu cheiro ainda está em mim.

Choro preso na garganta. O amor não existe mais, não quando já existiram tantos amores e nenhum durou tempo o suficiente.

Acabei de voltar da sua casa, eram pra ser só cinco minutos, mas você pediu pra eu entrar. Nós dois sozinhos acaba sempre em sexo, eu deveria ter desconfiado que levariam mais algumas horas.

Estou tão apegada, que dá medo. Mas não, o amor é só ilusão, não existem príncipes encantados, não existe 'para sempre', não existem promessas. Não para mim, não mais.

É tão bom o tempo que passamos juntos, teus olhos claros, tua barba bonita, as pintinhas na testa... Eu quase falei que te amo, hoje quando nos despedimos, engoli a seco todo esse sentimento estranho, e calei. Engoli junto com a saliva, a dorzinha estranha de querer mas saber que tudo acaba.

Sinto tanta vontade de te abraçar as vezes, você ali do meu lado na frente das pessoas, eu tento disfarçar pra tocar no seu braço, sentir tua pele mas sem que os outros percebam. Ou te apertar como quem não quer nada... E quando você me abraça? Aquelas clássicas borboletas no estômago.

Me parece que tô te amando pra caralho. Mas não, essas coisas não existem mais.


Necropsia


Abrir corpos.

Um animal morto, uma necropsia.

Incisões que não precisam ser precisas, são feitas começando com um sistemático ritual embaixo da mandíbula. Dois cortes um de cada lado. Puxa a língua pra fora. Vai saindo esôfago, traqueia, coração, pulmão.

Se você me perguntar qual meu órgão preferido, te respondo que tenho alguns. O fígado é muito bonito, vermelho escuro, com sua bili verde que quando aperta dá pra ver o fluxo. O pulmão crepitante se pressionado, dá pra sentir minúsculas bolhas de ar estourando. E o coração, músculo forte, cheio de válvulas e compartimentos meticulosamente pensados e criados. E os dois rins, com seus glomérulos e desenhos bonitos quando aberto ao meio.

Um amor: usar bisturis e pinças, tesouras e porta agulhas. A sensação é de liberdade, conhecer o desconhecido, aprender o que poucos sabem.

O sangue escorrendo, o cheiro fétido. O pior aroma de todos os tempos é de um estômago sendo aberto.

Você já viu uma hemorragia interna? Um mar vermelho entre os órgãos. Se abrir mais o tórax, vaza.
Fragmentar o corpo, tirar pedaços dos órgãos, brincar com o pulmão, apertar a bili, divulsionar a pele e músculos.

Mas confesso que depois de toda essa brincadeira, preciso de um banho, parece que tem sangue até dentro dos ouvidos.