Vira-lata

Não  tenho namorada, nem esposa, muito menos filhos. Sou um cara sozinho que visita a casa da mamãe nos horários de almoço, exceto nos finais de semana que costumo almoçar fora. As vezes me sinto bastante solitário, mais nada que um filme e uma pizza não resolvam.

Horário de verão, 6 horas da tarde e lá estava eu tomando minha coca-cola diária na padaria da esquina. As 7, uma reunião de trabalho. Me adiantei e logo fui para casa me enfiar dentro de um terno quente e desconfortável.

Após a reunião, peguei minha moto e acelerei. No primeiro, segundo... terceiro sinal vermelho, observo um vira-lata atravessando a rua com dificuldade, manco. Sinal abriu, acelerei. Me arrependi. A imagem daquele cachorro não saia da minha cabeça, ele parecia mal tratado, com uma tristeza visível em sua carinha, mesmo sendo um animal. Resolvi que iria dar meia volta, e assim fiz. Me assustei quando vi que ele não estava mais lá, estacionei e desci da moto pra conseguir observar melhor. Como pode ter sido tão rápido. Logo avistei alguns entulhos e cheguei  perto  pra dar uma olhada... nada. Coloquei o capacete, acelerei pela terceira vez. Próximo objetivo: dar uma volta pela quadra, e na próxima. Dei exatamente 7 voltas pelo mesmo lugar... nada.  Desisti de procurar. Quando estava quase chegando no portão de casa, avistei o tal vira-lata lá na frente, deitado, folgado. Achei que estava delirando, mais ele realmente estava lá. Era impossível! Fiquei pasmo, abri o portão, guardei a moto.  -Como você achou minha casa vira-lata?- perguntei em uma voz tão baixa que quase virou sussurro. Fiz ele entrar, manco, me obedeceu. Já estava escuro, acendi a luz da varanda. –Você quer água? Comida?- mais é claro que queria, coloquei água em um pote reciclado de margarina e um pouco de bolinhos no outro, que sobrou do lanche da noite de ontem. Limpou os dois potinhos. –Muito bem garoto, agora que tal um banho?- Liguei o chuveiro e tomei um belo de um banho... digo tomei por que o cachorrinho estava tão agitado que lavou o banheiro inteiro, inclusive eu. Fazia tempo que não me divertia assim. –Agora sim, amigão. Você tá lindo... mais lindo que eu!- Liguei para a pizzaria, encomendei duas, uma de calabresa e outra de frango. Ajeitei a sala com dois cobertores, o meu e um pro vira-lata. No sofá esperávamos ansiosos pela comida, enquanto assistíamos a um seriado divertido. Ele latia e vinha ao meu lado, querendo a minha coberta, pulando em meu peito e lambendo meu rosto. Com sua força, me machucou, eu o abracei e beijei seu focinho gelado.  Depois de meia hora a pizza chegou, comemos sem parar, junto com coca-cola. Até dizer chega... CHEGA!

Acordei com o celular tocando uma musica brega dos anos 80, atendi. Era meu chefe perguntando se o transito estava congestionado, eu respondi que não, me desculpei e disse que iria tirar o dia de folga, que acabei perdendo a hora, ele ficou bravo e resmungando, depois desligou. – Terei o dia pra cuidar de você hoje vira-lata! Vamos ao veterinário, a pé.- Levei dinheiro para as vacinas. Acabei comprando também roupas, uma coleira com guia bastante elegante, biscoitos de bifinho, uma bolinha de borracha e uma caminha prata com azul. Na sua patinha traseira uma tala feia, mais necessária. Fomos direto para casa de minha mãe almoçar. –Quem é esse ai filho?- perguntou ela. –Esse aqui é meu vira-lata, mãe.

Não  tenho uma namorada, nem esposa, nem  filhos. Visito minha mãe em horário de almoço, exceto nos finais de semana. Depois de ontem não me sinto mais sozinho, estou completo. Adotei um vira-lata que precisava de mim, e descobri que eu é quem precisava muito mais dele.